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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

50 Poemas e uma Carta ao Futuro











“50 poemas e uma carta ao futuro” é uma edição que mostra em sobrevoo os poemas representativos da minha produção poética. Diferente de outras opções de vida, ser poeta não se escolhe nem se ambiciona, trata-se de disfunção poética, que acomete o olhar do poeta, e o faz interessado em assuntos de menor monta, ou aqueles complexos, que a ciência e a religião descartam ou consideram sem importância. Entre o ínfimo e a grandeza, o poeta caminha sua aventura solitária, ao mesmo tempo fantástica, repleta de iluminações, assombrações e descobertas.



Meu modo de fazer poesia é uma ausência de modos. Ideias e imagens poéticas nos visitam e perturbam às vezes nos machucam. O incomodo pode durar minutos, horas, dias ou anos. A cura vem com o nascimento do poema. Mario Quintana, poeta brasileiro, dizia que todo poema é um parto. Há aqueles que nascem de parto natural, outros de cesariana. Uns nascem prontos, outros nem tanto e muitos precisam de um acompanhamento constante até revelar seu destino.


Os poemas selecionados para esta edição são representantes dos livrinhos de poesia que não lancei ainda, e que jazem escondidos em estado de fermentação, maturação ou descanso. Muitos deles estão no blogue “Encontros Notáveis". Os temas que os poemas tratam são vários mas tenho predileção pela observação das cidades. Sempre me fascinaram os relatos de exploradores europeus no período colonial e imperial do Brasil. Nomes como Langersdoff e Von Martius me iniciaram na exploração poética. Entre os poemas selecionados há alguns inspirados em Brasília, Lisboa, Rio de Janeiro, Cairo, São Paulo, Jerusalém, San Francisco, Cuzco e Nova York.



Estes 50 poemas e a carta ao futuro foram selecionados com base em uma série de perguntas simples: o poema resolveu o incomodo do poeta? Ou, o poema ensinou o poeta a ver melhor? Ou ainda, o poema ajudou a solucionar uma dúvida existencial do poeta? Aqueles poemas que responderam "sim" a estas perguntas estão nessa seleção, que passo aos olhos dos leitores, com a intenção de gerar novas questões e novos olhares.


Osmar Coelho
Brasília, 28/02/2019














1

No varal de roupas
o besouro equilibrista
mostra o show da corda bamba
para a plateia de plantas e ervas boquiabertas














2

O poeta caminha pela Mouraria
Africanos, Indianos, Paquistaneses
negociam o português
Ele é do Timor Leste
Ela é da China
mas a conversa é em inglês
O bonde Carrera 28 já vai partir
mais uma viagem ao redor do mundo
quando Lisboa acabou em 1755
para renascer no Rio de Janeiro






3

Café com leite e açúcar
Alma, história e sangue pisado
O pingado me enraíza
Senzala e fome torturada
Os três filhos da minha mátria:
o café negro encarcerado
o leite branco desterrado
a tristeza indígena do açúcar
Descem macios na garganta:
minha herança












4

Caco de vidro verde cortante
Pedra polida na areia da praia Vermelha:
Arredondar arestas é da natureza da natureza










5

desejo de sol
abraço de lua
escuto teu cantar
tua campainha
tem gente no teu pensar?
olhar de nuvem
castelo de artista
observar a garça
entre as rãs da pista
ouço o satélite
para te celular
acordo tom zé
para te celebrar













6

olhai de sapo a pedra
olhai de pedra o sapo
o sapo pensa tal
o pensador de Rodin






7

Lara queria ser teu Zhivago
o doutor, contudo divago
Se além de puro encanto
não seria desejo louco
sofrer em prantos
desencontros tantos
num romance russo
com uma garota do Leblon
















8

bacias das águas
               das terras
                   das almas
enchem e esvaziam corpos
conforme o sentimento, a fome e a razão:
rios de intenção















9

O amor definitivo deve morar na França
Bem longe e idealizado
perfumado de lavanda
O amor impossível deve falar francês
para que ninguém entenda nem mesmo os amantes
Guardaremos no território da Gália o melhor do amor
Sua impossibilidade, sua infinitude, sua eternidade
Melhor não entender a língua francesa
mas se encantar pela brisa ruidosa de suas sílabas
pelas inusitadas formas da fumaça de um cigarro
manuseado como um florete  
pelas mãos de uma hábil espadachim:
touche!






10

Não era uma árvore
que se enraizava na terra
Era uma raiz que desejava o céu















11

Aylan Al-Kurdi!
Desperta menino sírio
Hoje, teremos uma bela cama para ti
Dormiras aconchegado no coração da humanidade
que despertou triste ao saber
que não tivestes aonde dormir na noite passada...
Uma noite onde as estrelas observaram impávidas
a fuga de teus pais e parentes em direção a uma vida melhor

Aylan está noite será diferente
















12

Bolor de laranja não enfeitiça tangerina













13

O cavalo ébrio de Miró
está velho e sem dentes
Uma felicidade esquiva 
de envelhecer lhe pertence
Pela primeira vez do nada está ébrio
Não cobre éguas
Não transporta pessoas
Não disputa corridas
É um pedaço de coisa
que capta os raios do sol 
tropeçando em sua senil juventude
Engraçado como um palhaço
pleno de embriaguez vital















14

Enorme lua cheia
rasga o mar e abre a noite
Na luz da ribalta
despe-se do metal
lança-me uma bendição:
você será eternamente meu amante
sobre a ponte Golden Gate


















15

Prazer amazônico
de não ser sendo
de conhecer desconhecendo
Na íris da bôta, o cetáceo
ondulações do rio Negro
espraiando-se em desencontro
O nevoeiro esconde os espíritos da manhã
A imensa onda celeste desperta os ribeirinhos
Uma saudade das águas
o êxtase de voltar a si
De frente para o rio 
beber o nada que dissolve o ego
parteja o mito














16

Surfando no asfalto
o skate lê o carbono e decifra sinais:
um filme salta aos pés













17

Libélula planando
lado a lado com a bicicleta
Ou, a libélula está parada
ou, a bicicleta está voando
















18

No carnaval esse ano
Eu vou sair de “eu mesmo”:
todo mundo vai saber que é fantasia
















19

Negociava com Sinatra para seduzir o sono
Enquanto a insônia quebrava pedras
fugiu pelo labirinto do Minotauro
enganando-o com “fly me to the moon”
Quando a lua havia ido
o sol implacável e pop
derretia as letras de seu corpo de jornal













20

o azul do céu seca
as roupas que acabei de lavar
no varal vibram notas de Mozart












21

Velhos galãs de outrora
Musas que desfilam o charme
da galanteria carioca
Fazem parte da paisagem
como as escadarias de Santa Tereza
os morros da Urca
Após os velórios, rodas de samba
alguns vão direito aos céus do Corcovado
outros ao purgatório da Lapa














22

a vida é assim:
na falta de luz
a gente (se) ilumina













23

Para ser feliz
aboliu os domingos
Decisão tomada avisou à família
vieram as segundas e as terças
logo mais sumiram os sábados
e também a sexta
Sentiu-se mais livre e na quarta
mandou o natal as favas
a páscoa aos monges
o ano novo para Iemanjá
No aniversário declarou-se sem idade
assumiu cabelos brancos
sem vaidade
nas contradições floresceu o amor
dorme com uma á noite
acorda com outra de dia
No crepúsculo ela desconcerta
Agora é que são horas
aboliu a contagem do tempo
para viver a paisagem interior
Nas curvaturas do espaço
ela é inusitada e relativa
não aceita ficar congelada
numa selfie datada














24

Vozes do Brasil:
“É desorganizado mesmo”
“É sol o ano inteiro”
“Levaram minha bolsa”
“Alguém chame o médico”
“Mataram meu filho”
“Deus é brasileiro”
“Melhor país não há”
“Em se plantando tudo dá”
“Sem ordem não há progresso”
“A justiça só para o rico”
“O mundo é dos espertos”
“Só é pobre quem não trabalha”
“Lugar de bandido é na cadeia”
“É o país do futuro”















25

Seu Descartes não me descartes
nessa vida inexata minha desmatematica
Inadequação que nenhuma equação define
O poema resolve minha complexidade













26

Está armado o combate
Nuvens negras no horizonte ameaçam
o concreto amado de Niemayer
As formas da natureza versus 
a natureza das formas














27

Todas as coisas que passei nessa vida…
Esqueça!
Deixe-me ouvir essa linda música
sentado no chão de uma estação de metro
em Nova York
enquanto alguém tenta me dar uma esmola:
“Eu só tenho isso para te dar”
“Por favor, dê aos músicos”
Eu vivo da rua
o jazz cria uma casa para mim














28

A vida tem seus limões
Faremos então limonadas
nas águas esverdeadas de Ipanema












29

Este segundo é meu
seu infinito é difícil de tocar
Meu ser em pessoas e coisas
dissolvido em memorias e erros
A alegria na minha alma 
transmuta-se num instante
Este milênio é meu
sua fugacidade é difícil de explicar
Eu convido meus ancestrais a celebrar













30

Utopia é como bicicleta:
serve para levar o passado ao futuro
Quanto mais leve melhor














31

O outono cai na minha cabeça
O vento diz ao meu coração:
folhas, folhas, folhas…

















32

Ménage a Quatre
foi amor à primeira vista
Na primeira noite
fomos os quatro para a cama:
eu e ela, Ingrid Bergman e Hunfrey Bogart
(na vitrola “As time goes by”)














33

Réquiem para uma Garça

I

A garça é uma dama belíssima
Mal se percebe
suas pernas finíssimas

II

Árvore não tem acento agudo no a
Tem uma vírgula na copa:
uma garça



III

Dois homens pescando
A garça observa:
os peixes




IV

A garça dissidente
isolada se sente
na assembleia dos patos
brancos e pretos

V

Uma flor branca parada de repente
pesca um peixinho:
que garcinha!














34

Uma conversa especial existe
entre o céu e o mar
Infelizmente, ninguém sabe
o que eles estão a cochichar



















35

Lina Bo, a gata
pula na rede
derruba o copo
salta pela janela
Se ela toda fosse 

platônica anima
incorporada no transe
um desejo do mundo:
a felicidade felina
















36

que pontaria tem
aquela negra nuvem lá
acertou uma gota de chuva
na minha cabeça

















37

todo o esforço que faço
todo o meu cansaço
ao pedalar na subida
se transforma em vento
ar em movimento
que beija meu corpo na descida















38

os pardais nos fios de alta tensão
são notas musicais que acordam o dia
cantam e voam como os sons
para lugar nenhum











39

O futebol e o folhetim arrastam milhões
Flamenguistas sonham-se germânicos
Zico, o kaiser de Quintino, comanda o Rio de Janeiro
Cariocas cultivam memórias televisivas
seus personagens moram na praia de Ipanema
Mas noveleiros e boleiros sabem que a vida é curta
O que importa é o inédito capítulo especial

















40

Quando emigra o homem dos Andes
choram mulheres, crianças e lhamas
sua masculina ausência












41

Do Rio, vejo o mar
que me leva a Lisboa
De Lisboa, tão largo mar
conduz o olhar
aos aposentos do rei
Ontem, enorme boca do Tejo
Hoje, baia da Guanabara
Sorvem o tempo
as capitais do antigo império
abraçadas de um abraço líquido 
dissolvido no mar














42

A língua das pedras é a mesma
em todo o mundo
Eu sou fluente no silêncio da natureza














43

Aterrissam na terra ácida
asas utópicas e planos abertos
Traçam pontos de fuga e arestas
verdades por baixo da saia do concreto
perspectivas que recortam o cerrado
Dizem que vai alçar voo apesar das amarras
Dizem que a beleza alimenta a alma
Tudo que é sólido desmancha no céu de Brasília














44

A esfera negra desliza no asfalto
Não é uma bola de meia rolando
nas ruas azuis de minha infância
Na Avenida Paulista
a pequena bola negra gira
A gente corre dela
ela explode e atrás da gente
a violência















45

Nos doces
nos pães
nos narguilés
as ervas tocam alaúdes
Nestes temperos sem valor
alguém pode encontrar certa alegria
que perfuma toda a cidade do Cairo
Cercada por novos conquistadores
livre no essencial


















46

Eu queria ser um poeta de metro
Um gigante de dois metros e trinta de poesia
As palavras jorrando em cataratas do Iguaçu
Eu queria ser um poeta de estrofes numeradas
uma depois da outra como as quadras de Brasília
Ao invés, este gosto pelo rápido
pelo que é curto e cabe no minuto
Eu queria ser um Sartre
sem náusea de ler a biblioteca de Alexandria
Ao invés, olha eu aqui adorando haikais
que dedico aos leitores com preguiça
Meus versos me dão uma alegria
de não estar totalmente certo ou errado
Nunca se sabe onde a felicidade se inicia
nem onde termina o espanto da poesia















47

Cada passo, um rifle
Cada reza, uma maldição
Ela caminha através de antigos medos
cruzando memórias e tradições
Rasteja para recolher restos de felicidade
enquanto atiram palavras feias
em latim, em hebraico
em árabe, em silêncio
ultrapassa outra barreira
outro posto policial
Ela vive isso todos os dias:
Jerusalém















 48

Todo mundo tem mãe
O mundo tem jeito?
Nem todos lembram
dos berços e manjedouras
coisinhas de brincar
Todo mundo tem mãe
nem que seja a mãe do mundo
seja ela quem for
Todo mundo tem herança
nem que seja no corpo
Na alma vive a mãe esperança
de onde até o inesperado bebê
pode nascer e ter infância
seja lá como for
Todo mundo tem mãe
nosso eterno denominador comum
O mundo tem jeito?
Tem mãe!

















49

A pedra da esquina
quer ser no poeta
A mangueira que ondula
sonha no poeta
O gato que mia quer verso
A águia que observa do alto
quer ver de perto
Os bichos da terra
têm vida de poeta
As plantas de milho
com seus cachos dourados
querem algo que rima
Cães ladram em outras línguas
Coiotes poetam para a lua
Até eu que não sei quem sou
quero ser na poesia


















50

quem não é feliz
da vida tem queixa
inveja o rabo alheio
coisa que não viceja
cortaram o rabo do calango
foi olho gordo por demais
pela fome se consumia
o invejoso ficou com o rabo
o calango com a alegria
ganhou rabo novo e sem nostalgia
quem fica com o rabo do passado
vai sempre ficar engasgado















Carta ao Futuro




Eu e minha imensa força
Napoleão e Quixote no mesmo pacote
O princípio, a forma e a essência da vida
condenado a fazê-la plena

para que todos saibam que é possível
Responsável pela conspiração poética 
das pequenas revoluções estéticas
pelos grandes atos comuns e desconhecidos

pela invenção das palavras doces
pela organização dos abraços
Autor intelectual de ataques de otimismo
declararei em alto e bom som que serei

um estraga prazeres do niilismo irresponsável
de uma burguesia pseudoliberal
de um socialismo burocrático
Em praça pública, na tevê aberta e a cabo

proclamarei na internet que daqui por diante
colocarei em prática todas as minhas habilidades
Em mim, famélicos de todas as fomes
tereis um obstinado defensor da liberdade

Serei um exemplo de inesgotável criatividade
Usarei das mais avançadas tecnologias
da mais alta cultura
das discussões dos filósofos

das conversas das comadres e compadres do jongo
do bumba-meu-boi, do samba, da umbigada
da embolada, do rap, do cordel, da poesia de rua
dos improvisos do jazz às sinfonias de Mozart


das histórias de Suassuna aos grafismos de Oiticica
dos versos de Vinícios as invenções de Macalé
da sabedoria de um Machado aos contorcionismos de um Tom Zé
das curvas de Niemayer ao sorriso da Monalisa

das pinturas de Klimt aos grafites de Basquiat
para mostrar que a vida não é esse nada
destinado ao péssimo e entregue á sorte
De pé, injustiçados de todo o mundo

Unimo-nos!
nessas pequenas vitórias éticas
de prazeres e alegrias cotidianas:
O presente é nosso!













"Seja Gentil" (Charles Bukowski)

nos pedem sempre para entender o ponto de vista da outra pessoa não importando o quão fora de época tolo ou deplorável. alguém...