“50
poemas e uma carta ao futuro” é uma edição que mostra em
sobrevoo os poemas representativos da minha produção poética. Diferente de
outras opções de vida, ser poeta não se escolhe nem se ambiciona, trata-se de
disfunção poética, que acomete o olhar do poeta, e o faz interessado em
assuntos de menor monta, ou aqueles complexos, que a ciência e a religião descartam
ou consideram sem importância. Entre o ínfimo e a grandeza, o poeta caminha sua
aventura solitária, ao mesmo tempo fantástica, repleta de iluminações,
assombrações e descobertas.
Meu
modo de fazer poesia é uma ausência de modos. Ideias e imagens poéticas nos
visitam e perturbam às vezes nos machucam. O incomodo pode durar minutos,
horas, dias ou anos. A cura vem com o nascimento do poema. Mario Quintana,
poeta brasileiro, dizia que todo poema é um parto. Há aqueles que nascem de
parto natural, outros de cesariana. Uns nascem prontos, outros nem tanto e
muitos precisam de um acompanhamento constante até revelar seu destino.
Os
poemas selecionados para esta edição são representantes dos livrinhos de poesia
que não lancei ainda, e que jazem escondidos em estado de fermentação,
maturação ou descanso. Muitos deles estão no blogue “Encontros Notáveis". Os temas que os poemas tratam são vários mas tenho predileção pela observação das cidades. Sempre
me fascinaram os relatos de exploradores europeus no período colonial e
imperial do Brasil. Nomes como Langersdoff e Von Martius me iniciaram na
exploração poética. Entre os poemas selecionados há alguns inspirados em
Brasília, Lisboa, Rio de Janeiro, Cairo, São Paulo, Jerusalém, San Francisco, Cuzco
e Nova York.
Estes
50 poemas e a carta ao futuro foram selecionados com base em uma série de
perguntas simples: o poema resolveu o incomodo do poeta? Ou, o poema ensinou o
poeta a ver melhor? Ou ainda, o poema ajudou a solucionar uma dúvida
existencial do poeta? Aqueles poemas que responderam "sim" a estas perguntas estão
nessa seleção, que passo aos olhos dos leitores, com a intenção de gerar novas
questões e novos olhares.
Osmar
Coelho
Brasília,
28/02/2019
1
No varal de roupas
o besouro
equilibrista
mostra o show da
corda bamba
para a plateia de
plantas e ervas boquiabertas
2
O poeta caminha pela
Mouraria
Africanos, Indianos, Paquistaneses
negociam o português
Ele é do Timor Leste
Ela é da China
mas a conversa é em
inglês
O bonde Carrera 28 já
vai partir
mais uma viagem
ao redor do mundo
quando Lisboa acabou
em 1755
para renascer no Rio de Janeiro
3
Café com leite e
açúcar
Alma, história e sangue
pisado
O pingado me enraíza
Senzala e fome
torturada
Os três filhos da
minha mátria:
o café negro
encarcerado
o leite branco
desterrado
a tristeza indígena
do açúcar
Descem macios na
garganta:
minha herança
4
Caco de vidro verde
cortante
Pedra polida na areia da praia Vermelha:
Arredondar arestas é da natureza da natureza
Pedra polida na areia da praia Vermelha:
Arredondar arestas é da natureza da natureza
5
desejo de sol
abraço de lua
escuto teu cantar
tua campainha
tem gente no teu
pensar?
olhar de nuvem
castelo de artista
observar a garça
entre as rãs da pista
ouço o satélite
para te celular
acordo tom zé
para te celebrar
6
olhai de sapo a pedra
olhai de pedra o sapo
o sapo pensa tal
o pensador de Rodin
7
Lara queria ser teu
Zhivago
o doutor, contudo
divago
Se além de puro
encanto
não seria desejo
louco
sofrer em prantos
desencontros tantos
num romance russo
com uma garota do
Leblon
8
bacias das águas
das terras
das almas
enchem e esvaziam
corpos
conforme o
sentimento, a fome e a razão:
rios de intenção
9
O amor definitivo
deve morar na França
Bem longe e
idealizado
perfumado de lavanda
O amor impossível
deve falar francês
para que ninguém
entenda nem mesmo os amantes
Guardaremos no
território da Gália o melhor do amor
Sua impossibilidade,
sua infinitude, sua eternidade
Melhor não entender a
língua francesa
mas se encantar pela
brisa ruidosa de suas sílabas
pelas inusitadas
formas da fumaça de um cigarro
manuseado como um
florete
pelas mãos de uma
hábil espadachim:
touche!
10
Não era uma árvore
que se enraizava na
terra
Era uma raiz que
desejava o céu
11
Aylan Al-Kurdi!
Desperta menino sírio
Hoje, teremos uma
bela cama para ti
Dormiras aconchegado no coração da humanidade
que despertou triste ao saber
que não tivestes aonde dormir na noite passada...
Uma noite onde as estrelas observaram impávidas
a fuga de teus pais e parentes em direção a uma vida
melhor
Aylan está noite será diferente
Dormiras aconchegado no coração da humanidade
que despertou triste ao saber
que não tivestes aonde dormir na noite passada...
Uma noite onde as estrelas observaram impávidas
a fuga de teus pais e parentes
Aylan está noite será diferente
12
Bolor de laranja não
enfeitiça tangerina
13
O cavalo ébrio
de Miró
está velho
e sem dentes
Uma felicidade
esquiva
de envelhecer lhe pertence
Pela primeira vez do
nada está ébrio
Não cobre éguas
Não transporta pessoas
Não disputa corridas
É um pedaço
de coisa
que capta os raios do
sol
tropeçando em
sua senil juventude
Engraçado como um
palhaço
pleno de embriaguez vital
14
Enorme lua cheia
rasga o mar e abre a
noite
Na luz da ribalta
despe-se do metal
lança-me uma bendição:
você será eternamente
meu amante
sobre a ponte Golden
Gate
15
Prazer amazônico
de não ser sendo
de conhecer
desconhecendo
Na íris da bôta, o
cetáceo
ondulações do rio Negro
espraiando-se em
desencontro
O nevoeiro esconde os
espíritos da manhã
A imensa onda celeste
desperta os ribeirinhos
Uma saudade das águas
o êxtase de voltar a
si
De frente para o rio
beber o nada que dissolve o ego
parteja o mito
beber o nada
parteja o mito
16
Surfando no asfalto
o skate lê o carbono
e decifra sinais:
um filme salta aos
pés
17
Libélula planando
lado a lado com a
bicicleta
Ou, a libélula está
parada
ou, a bicicleta está
voando
18
No carnaval esse ano
Eu vou sair de “eu
mesmo”:
todo mundo vai saber
que é fantasia
19
Negociava com Sinatra
para seduzir o sono
Enquanto a insônia
quebrava pedras
fugiu pelo labirinto
do Minotauro
enganando-o com “fly
me to the moon”
Quando a lua havia
ido
o sol implacável e pop
derretia as letras de
seu corpo de jornal
20
o azul do céu seca
as roupas que acabei
de lavar
no varal vibram notas de
Mozart
21
Velhos galãs de
outrora
Musas que desfilam o
charme
da galanteria carioca
Fazem parte da
paisagem
como as escadarias de
Santa Tereza
os morros da Urca
Após os velórios,
rodas de samba
alguns vão direito
aos céus do Corcovado
outros ao purgatório
da Lapa
22
a vida é assim:
na falta de luz
a gente (se) ilumina
23
Para ser feliz
aboliu os domingos
Decisão tomada avisou
à família
vieram as segundas e
as terças
logo mais sumiram os
sábados
e também a sexta
Sentiu-se mais livre
e na quarta
mandou o natal as
favas
a páscoa aos monges
o ano novo para
Iemanjá
No aniversário declarou-se
sem idade
assumiu cabelos
brancos
sem vaidade
nas contradições
floresceu o amor
dorme com uma á noite
acorda com outra de
dia
No crepúsculo ela
desconcerta
Agora é que são horas
aboliu a contagem do
tempo
para viver a paisagem
interior
Nas curvaturas do
espaço
ela é inusitada e
relativa
não aceita ficar
congelada
numa selfie datada
24
Vozes do Brasil:
“É desorganizado
mesmo”
“É sol o ano inteiro”
“Levaram minha bolsa”
“Alguém chame o
médico”
“Mataram meu filho”
“Deus é brasileiro”
“Melhor país não há”
“Em se plantando tudo
dá”
“Sem ordem não há
progresso”
“A justiça só para o
rico”
“O mundo é dos
espertos”
“Só é pobre quem não
trabalha”
“Lugar de bandido é
na cadeia”
“É o país do futuro”
25
Seu Descartes não me
descartes
nessa vida inexata
minha desmatematica
Inadequação que
nenhuma equação define
O poema resolve minha
complexidade
26
Está armado o combate
Nuvens negras no
horizonte ameaçam
o concreto amado de
Niemayer
As formas da natureza versus
a natureza das formas
a natureza das formas
27
Todas as coisas que
passei nessa vida…
Esqueça!
Deixe-me ouvir essa linda música
sentado no chão de
uma estação de metro
em Nova York
enquanto alguém tenta
me dar uma esmola:
“Eu só tenho isso
para te dar”
“Por favor, dê aos
músicos”
Eu vivo da rua
o jazz cria uma casa
para mim
28
A vida tem seus
limões
Faremos então limonadas
nas águas esverdeadas
de Ipanema
29
Este segundo é meu
seu infinito é
difícil de tocar
Meu ser em pessoas e
coisas
dissolvido em
memorias e erros
A alegria na minha
alma
transmuta-se num instante
transmuta-se num instante
Este milênio é meu
sua fugacidade é
difícil de explicar
Eu convido meus
ancestrais a celebrar
30
Utopia é como
bicicleta:
serve para levar o
passado ao futuro
Quanto mais leve
melhor
31
O outono cai na minha
cabeça
O vento diz ao meu
coração:
folhas, folhas,
folhas…
32
Ménage a Quatre
foi amor à primeira
vista
Na primeira noite
fomos os quatro para
a cama:
eu e ela, Ingrid
Bergman e Hunfrey Bogart
(na vitrola “As time
goes by”)
33
Réquiem para uma Garça
I
A garça é uma dama
belíssima
Mal se percebe
suas pernas
finíssimas
II
Árvore não tem acento agudo no
a
Tem uma vírgula na copa:
uma garça
III
Dois homens pescando
A garça observa:
os peixes
IV
A garça dissidente
isolada se sente
na assembleia dos
patos
brancos e pretos
V
Uma flor branca
parada de repente
pesca um peixinho:
que garcinha!
34
Uma
conversa especial existe
entre
o céu e o mar
Infelizmente,
ninguém sabe
o
que eles estão a cochichar
35
Lina Bo, a gata
pula na rede
derruba o copo
salta pela janela
Se ela toda fosse
platônica anima
incorporada no transe
um desejo do mundo:
a felicidade felina
pula na rede
derruba o copo
salta pela janela
Se ela toda fosse
platônica anima
incorporada no transe
um desejo do mundo:
a felicidade felina
36
que pontaria tem
aquela negra nuvem lá
acertou uma gota de
chuva
na minha cabeça
37
todo o esforço que faço
todo o meu cansaço
ao pedalar na subida
se transforma em
vento
ar em movimento
que beija meu corpo
na descida
38
os pardais nos fios
de alta tensão
são notas musicais
que acordam o dia
cantam e voam como os
sons
para lugar nenhum
39
O futebol e o
folhetim arrastam milhões
Flamenguistas
sonham-se germânicos
Zico, o kaiser de
Quintino, comanda o Rio de Janeiro
Cariocas cultivam
memórias televisivas
seus personagens
moram na praia de Ipanema
Mas noveleiros e
boleiros sabem que a vida é curta
O que importa é o
inédito capítulo especial
40
Quando emigra o homem
dos Andes
choram mulheres, crianças e lhamas
sua masculina ausência
choram mulheres, crianças e lhamas
sua masculina ausência
41
Do Rio, vejo o mar
que me leva a Lisboa
De Lisboa, tão largo
mar
conduz o olhar
aos aposentos do rei
Ontem, enorme boca do
Tejo
Hoje, baia da
Guanabara
Sorvem o tempo
as capitais do antigo
império
abraçadas de um
abraço líquido
dissolvido no mar
42
A
língua das pedras é a mesma
em
todo o mundo
Eu
sou fluente no silêncio da natureza
43
Aterrissam na terra
ácida
asas utópicas e
planos abertos
Traçam pontos de fuga
e arestas
verdades por baixo da
saia do concreto
perspectivas que
recortam o cerrado
Dizem que vai alçar
voo apesar das amarras
Dizem que a beleza
alimenta a alma
Tudo que é sólido
desmancha no céu de Brasília
44
A esfera negra desliza
no asfalto
Não é uma bola de
meia rolando
nas ruas azuis de minha
infância
Na Avenida Paulista
a pequena bola negra gira
A gente corre dela
ela explode e atrás
da gente
a violência
45
Nos doces
nos pães
nos narguilés
as ervas tocam alaúdes
Nestes temperos sem valor
alguém pode encontrar certa alegria
que perfuma toda a cidade do Cairo
Cercada por novos conquistadores
nos pães
nos narguilés
as ervas tocam alaúdes
Nestes temperos sem valor
alguém pode encontrar certa alegria
que perfuma toda a cidade do Cairo
Cercada por novos conquistadores
livre no essencial
46
Eu queria ser um
poeta de metro
Um gigante de dois
metros e trinta de poesia
As palavras jorrando
em cataratas do Iguaçu
Eu queria ser um
poeta de estrofes numeradas
uma depois da outra
como as quadras de Brasília
Ao invés, este gosto
pelo rápido
pelo que é curto e
cabe no minuto
Eu queria ser um
Sartre
sem náusea de ler a
biblioteca de Alexandria
Ao invés, olha eu
aqui adorando haikais
que dedico aos
leitores com preguiça
Meus versos me dão
uma alegria
de não estar
totalmente certo ou errado
Nunca se sabe onde a
felicidade se inicia
nem onde termina o
espanto da poesia
47
Cada passo, um rifle
Cada reza, uma maldição
Ela caminha através
de antigos medos
cruzando memórias e tradições
Rasteja para recolher
restos de felicidade
enquanto atiram
palavras feias
em latim, em hebraico
em árabe, em silêncio
ultrapassa outra
barreira
outro posto policial
Ela vive isso todos
os dias:
Jerusalém
48
Todo mundo tem mãe
O mundo tem jeito?
Nem todos lembram
dos berços e
manjedouras
coisinhas de brincar
Todo mundo tem mãe
nem que seja a mãe do
mundo
seja ela quem for
Todo mundo tem
herança
nem que seja no corpo
Na alma vive a mãe
esperança
de onde até o
inesperado bebê
pode nascer e ter
infância
seja lá como for
Todo mundo tem mãe
nosso eterno
denominador comum
O mundo tem
jeito?
Tem mãe!
49
A pedra da esquina
quer ser no poeta
A mangueira que
ondula
sonha no poeta
O gato que mia quer
verso
A águia que observa
do alto
quer ver de perto
Os bichos da terra
têm vida de poeta
As plantas de milho
com seus cachos
dourados
querem algo que rima
Cães ladram em outras
línguas
Coiotes poetam para a
lua
Até eu que não sei
quem sou
quero ser na poesia
50
quem não é feliz
da vida tem queixa
inveja o rabo alheio
coisa que não viceja
cortaram o rabo do calango
cortaram o rabo do calango
foi olho gordo por
demais
pela fome se consumia
o invejoso ficou com o rabo
o calango com a alegria
o invejoso ficou com o rabo
o calango com a alegria
ganhou rabo novo e sem nostalgia
quem fica com o rabo
do passado
vai sempre ficar engasgado
vai sempre ficar engasgado
Carta
ao Futuro
Eu e minha imensa
força
Napoleão e Quixote no
mesmo pacote
O princípio, a forma
e a essência da vida
condenado a fazê-la
plena
para que todos saibam que
é possível
Responsável pela
conspiração poética
das pequenas
revoluções estéticas
pelos grandes atos comuns e desconhecidos
pela invenção das
palavras doces
pela organização dos
abraços
Autor intelectual de
ataques de otimismo
declararei em alto e
bom som que serei
um estraga prazeres
do niilismo irresponsável
de uma burguesia
pseudoliberal
de um socialismo
burocrático
Em praça pública, na tevê
aberta e a cabo
proclamarei na internet que daqui por diante
colocarei em prática
todas as minhas habilidades
Em mim, famélicos de
todas as fomes
tereis um obstinado defensor
da liberdade
Serei um exemplo de inesgotável
criatividade
Usarei das mais
avançadas tecnologias
da mais alta cultura
das discussões dos
filósofos
das conversas das
comadres e compadres do jongo
do bumba-meu-boi, do
samba, da umbigada
da embolada, do rap, do cordel, da poesia de rua
dos improvisos do jazz às sinfonias de Mozart
dos improvisos do jazz às sinfonias de Mozart
das histórias de Suassuna aos grafismos de Oiticica
dos versos de Vinícios as invenções de Macalé
da sabedoria de um Machado aos contorcionismos de um Tom Zé
das curvas de Niemayer ao sorriso da Monalisa
das pinturas de Klimt aos grafites de Basquiat
para mostrar que a
vida não é esse nada
destinado ao péssimo
e entregue á sorte
De pé, injustiçados
de todo o mundo
Unimo-nos!
nessas pequenas vitórias éticas
de prazeres e
alegrias cotidianas:
O presente é nosso!